Look Back: Pensar o Passado e Caminhar para o Futuro
Publicado a 15 Out, 2024

“Então, porque é que desenhas, Fujino?”

Questiona-se Fujino enquanto recorda a longa amizade que construiu com Kyomoto, algo que, naquele momento, sobrevive apenas como meras imagens longínquas de um passado impossível de retornar. Contudo, essa pergunta parece não ser algo exclusivo da reflexão nostálgica da mulher, ela surge como uma interrogação que trespassa todas as páginas da obra, nascendo como dúvida inerente do artista.

Todavia, deixemos esse debate para mais tarde, quero dar-vos a conhecer primeiro a obra. Criada por Tatsuki Fujimoto durante a pandemia como uma forma de recordar o trágico ataque ao estúdio da Kyoto Animation — tema importante naquilo que foi a forma do autor construir o One Shot — e lançada a 19 de Julho de 2021, tendo sido adaptado para as telas do cinema em Julho de 2024, Look Back explora o relacionamento entre Fujino e Kyomoto com o mundo das artes, juntando uma pitada de contemplações sobre a memória e um sentimento de solidão que parece inato a quem decide trilhar o caminho marginalizado do mangá na sociedade japonesa.

É neste momento que tenho de deixar claro que o mergulho que vamos dar sobre o longo oceano que é Look Back. Está recheado de informações dos acontecimentos da narrativa, podendo estragar a experiência para algumas pessoas que queiram visitar a obra logo após passarem os olhos pelo artigo. Por isso, recomendo que se deleitem primeiro na arte de Fujimoto antes de continuarem, já que a obra está disponível em inglês no site da Shueisha, ou, para quem gosta do cheiro requintado do papel como eu, já podem adquirir o volume único, sendo um dos lançamentos da Devir deste mês, um anúncio que veio impulsionar a expectativa em relação ao filme no território nacional.

O Medo de Ser Esquecido

Ao encarar a capa pela primeira vez, o meu olhar descansou sobre aquela jovem sentada a desenhar sobre a luz constante que entrava pela janela, uma imagem que para mim enquanto escritor é muito recorrente. Essa jovem, chamada Fujino, é nos apresentada logo na primeira página como uma talentosa artista, tendo os seus trabalhos publicados em formato de Yontoma — estilo de banda desenhada caracterizada por tiras de quatro quadrados na vertical — no jornal da escola, trabalhos esses que são encarados pelos seus colegas de turma como um grande sucesso. No entanto, todo esse ciclo de atenção semanal é alterado quando ela vê o seu destino entrelaçado com uma rapariga reclusa nomeada de Kyomoto, passando ambas a desenhar para o jornal e desenvolvendo uma competição pelos aplausos dos seus colegas.

Ao introduzir um desafio juvenil entre as duas protagonistas, Fujimoto, à primeira vista, parece exaltar a competição, já que Fujino acaba por dedicar seus dias ao aperfeiçoamento da sua arte. No entanto, essa busca incessante por reconhecimento entre os colegas revela-se um comportamento obsessivo, que gradualmente substitui as relações pessoais da personagem. Dessa forma, a narrativa expõe uma crítica implícita ao “Toyotismo” social japonês, destacando as consequências dessa lógica de produtividade extrema e isolamento.

Após perder dezenas de batalhas para Kyomoto, Fujino decide dar a guerra como perdida e aceita a sua inferioridade face à adversária, abandonando de vez o seu amor pelo desenho. Escolha essa que se mantém até ambas se encontrarem pela primeira vez, descobrindo assim que Kyomoto sempre considerou a oponente como estando num patamar superior, algo semelhante a uma mestre, termo que esta usa para chamar Fujino. É neste momento que temos aquele que é o melhor enquadramento do mangá, uma dança de liberdade no meio da chuva pelos arrozais, expressando assim o suspiro de vida que Fujino precisava para voltar a desenhar, ser reconhecida como uma boa artista por quem ela tanto ansiava em tornar-se.

Desde aquele dia memorável, Fujino e Kyomoto passaram a trilhar juntas o caminho árduo do mundo dos mangás. A obra apresenta-nos uma amizade construída quadro a quadro, com belas imagens de duas jovens envolvidas por uma paixão juvenil pela arte, momentos que dificilmente deixarão indiferente até os corações menos sensíveis. No entanto, Fujimoto, como narrador, não permitiria que essa felicidade perdurasse até o fim da história. Enquanto ainda nos emocionamos com o vínculo entre as duas, ele revela o sonho de Kyomoto: ingressar na Faculdade de Belas-Artes de Yamagata. Esse desejo cria uma rutura na amizade, e, por meio de diálogos magistralmente escritos, revela-se o lado mais tóxico de Fujino, que temia perder a atenção que tanto a motivava a seguir em frente.

Com os caminhos separados, Fujino escolhe continuar a percorrer o trajeto sinuoso do mangá, caindo mais uma vez nos braços de uma solidão assombrada, reflexo de uma provável emoção que Fujimoto desenvolveu durante a pandemia transcrita na obra. Dia após dia passam agora num movimento constante, linha a linha, desenho a desenho, semelhante a um relógio monótono. Assim prepara-nos a narrativa para o abanão que desmoronaria a farsa sem sentimento que Fujino havia criado, mal deixou a amiga escapar por entre os dedos. Um homem armado com algo parecido a um machado, semelhante ao trágico caso da Kyoto Animation, havia invadido a escola onde Kyomoto estudava, vitimando tanto a jovem como outros estudantes. É neste momento que a obra brilha, vislumbres rápidos de memórias soltas correm pelas páginas e juntam-se ao funeral melancólico da rapariga, terminando numa volta a um passado imaginado, um mundo onde ambas não se conheciam e tudo acabava bem, no entanto vivido apenas na mente sentenciada de Fujino.

Fujimoto apresenta-nos, em Look Back, a sua mais profunda reflexão: a superação. Ele conclui, de forma brilhante, que o passado é imutável e não pode ser alterado. Fantasiar, como a protagonista faz numa fase inicial, um destino alternativo onde um final feliz lhes sorriria, apenas conduz ao sofrimento. Esse sofrimento, transformado numa culpa esmagadora, assemelha-se a um rio de dor que atravessa o coração amedrontado, apontando apenas uma solução: seguir em frente, carregando os ensinamentos que esse passado doloroso nos proporcionou. No final, a personagem percebe que o que a fazia levantar a mão para desenhar mais uma página era o desejo de imaginar os seus leitores a absorverem mais um dos seus brilhantes capítulos.

A Arte de Seguir em Frente

Depois de acompanhar a longa jornada que foi o crescimento da Fujino, restam apenas os pensamentos que as belas reflexões da obra acompanham, debates que perturbam a minha cansada cabeça de artista, surgindo no meio deles sempre a mesma fala: “Então, porque é que desenhas, Fujino?”. Este “porquê” é tão sugestivo, não passa de uma forma de olharmos o abismo melancólico que é a vida, abismo ao qual tendemos sempre a procurar uma razão para preencher, e tentarmos buscar no passado a resposta para entender porque continuamos a seguir em frente. Porém, é quando penso em saltar para esse poço profundo que escuto a voz longínquo de Fujimoto sair das páginas e sussurrar no meu ouvido: “Tens apenas de seguir em frente…”.

Com este final, não encaro Look Back como uma mera história construída para matar o tédio de um artista em meio ao hiato entre as duas partes de Chainsaw Man, obra principal do autor, e sim, semelhante a um tratado que reflete a própria vida de Fujimoto. Para esta conclusão invoco os nomes das personagens, — que juntos formam o nome do autor — a faculdade onde Kyomoto vai estudar — a mesma onde Fujimoto tirou a sua licenciatura — e até a história de sucesso que Fujino escreve — obra que faz referência a um dos personagens mais importantes do desenhista.

Escrito por:
Guilherme Alves
Era uma vez um jovem sonhador destinado a vaguear pelo caminho turbulento da escrita, uma jornada que o levou pelos mares atribulados da narrativa e os desertos escaldantes da gramática. Bem, esse jovem sou eu, um escritor independente que anseia usar a arte para revelar o interior mais visceral da humanidade.