Um playboy, solitário na calada, que se veste de morcego. Um herdeiro de uma longa linhagem de vingadores que se vestem de roxo escuro e usam uma mascarilha. Um miúdo que nos Carnavais não dormia bem se a mãe não o vestisse de capa preta, máscara e espada.
Que têm todos eles em comum? Zorro. Enquanto base de arquétipo de personagem e influência estética, isto é. E aquele miúdo? Não era apenas eu, no início do século… todos os miúdos eram Zorro!
Li há pouco tempo o muito aguardado (especialmente da minha parte, visto que já me “sorria” a partir da estante desde que foi lançado) Don Vega, argumento e desenho por Pierre Alary e editado em Portugal pela Ala dos Livros (Março de 2022).
Esta belíssima edição de capa dura, no formato de álbum franco-belga, marca a continuação da qualidade, ininterrupta, do trabalho editorial da Ala dos Livros. Apresentam-nos um papel de alta qualidade ao toque, com acabamento meio brilhante. Na capa temos verniz localizado no título, no verso, os “olhos” da máscara.
A capa apresenta uma figura que será a primeira evidência disto se tratar de uma história de Zorro, no entanto a falta do titular chapéu mexicano (conhecido tradicionalmente como sombrero cordobés) indica que não se trata apenas de “mais” uma aventura do justiceiro mascarado, pois este não é o ícone a que muitos estarão habituados.
Reforça essa ideia o pequeno-grande detalhe que é o “Z” laranja, o cenário de fundo da capa, está lá… mas não é óbvio. Tratar-se-á de um prenúncio curioso, ou layout “acidental”? Para além desta pista visual encaixar com o decorrer da evolução indumentária do personagem acredito que, na importância que uma capa acarreta, Pierre Alary terá pensado muito e bem no design da mesma.
Sem que possamos pensar muito nesse ícone, eis que Alary nos introduz a história: um preocupado padre Delgado que anuncia por carta, a Don Vega, que os pais do mesmo faleceram num terrível acidente. Sem podermos ponderar muito sobre o assunto, imediatamente na seguinte página vemos que um bêbado cambaleia pelas ruas do México, numa noite de tempestade, com uma máscara muito semelhante à do vulto na capa, mesmo antes de entrar numa igreja onde decorre o batismo de alguém que é fulcral para o futuro – nós apenas não o sabemos ainda – querendo, nas palavras simpáticas dele, entregar “…la muerte!”.
Este é rápida e impiedosamente abatido pelo antagonista da história, General Gomez, ex-oficial na guerra do México. Encontramo-nos em tempos tensos que revolvem em torno da ganância, ouro por garimpar, e esquemas de apropriação de terrenos previamente detidos pelo povo mexicano. Contrariamente, estes parecem ainda assim ter alguma força de resistência já que, como mencionei antes sobre os meus Carnavais em miúdo, também os mexicanos desta história eram “todos” Zorro. Portanto, ainda sendo a força maior, também os maus da fita sentem alguma inquietação nas suas rotinas, quase que assombrados por algo tão imortal: um símbolo.
Boa parte desta informação, e mais, está cronologicamente delineada numa página, que precede a primeira prancha do álbum, onde Alary contextualiza todo este cenário sociopolítico.
Vega retorna ao México após anos de estudo militar em Espanha e depara-se com a sepultura da sua família (de bastantes boas posses) e todas as suas terras apropriadas pelo General Gomez. Segue uma narrativa de vingança, onde o próprio Vega reage personificando a lenda de Zorro, que aprendemos ser uma história popular contada desde há várias gerações até então. E aí nasce a primeira materialização de Zorro… ou será mesmo a primeira?
Para essa resposta, reservo a conclusão a quem queira ver pelos próprios olhos, porque, honestamente, entre o pacing básico e a ação algo dececionante (mesmo até rara) até que somos presenteados, bem no final, com uma revelação que com certeza agradará aos fãs do personagem.
Dito isto, fiquei com maior vontade de ler a obra original sobre a lenda de Zorro: A Marca de Zorro, pelo autor Johnston Mcculley, de 1919.
Falta falar da arte de Pierre Alary da qual, sendo esta a primeira Banda-Desenhada por ele que consumo, e sendo também ilustrador neste meio, posso confiantemente anunciar que me tornei fã dos traços que produz.
No campo da 9ª arte, quando penso no Zorro, o primeiro nome que me vem à cabeça é Alex Toth. Ainda assim, sendo igualmente adorador de um traço mais estilizado – sem ser “abusivamente infantil” – acredito que a contribuição de Alary é significante para uma audiência moderna (não me entendam mal, o trabalho do mestre Toth é intemporal). E talvez por adorar o traço dele, pela significância maior que poderia ter tido, especialmente se tivesse aliado a um guião mais complexo e rico e consequentemente elevar o mesmo, seja a razão pela qual senti que o enredo ficou um tanto ou quanto aquém. Mas que divertido foi navegar pelos desenhos de Alary!
Mas, como qualquer coisa subjetiva, recomendo ainda assim a leitura deste Don Vega, e muito curioso em saber se concordam comigo, se discordam, e porquê.
Uma última nota, apesar de toda a crítica, tenho de realçar o quão incrivelmente exaustivo e stressante é desenhar um álbum de Banda-Desenhada inteiro, quanto mais um com quase 100 páginas… quanto mais um em que não só temos a nosso cargo o desenho, arte final, cores e legendagem, mas também toda a escrita do guião e, pelo empenho e amor ao ofício que isso implica, o meu maior respeito para com o sr. Alary.
Por homenagem a todo esse amor à criação de Banda-Desenhada, a que Alary indiretamente me inspirou com a sua mensagem pessoal na última página do livro. Pelo simples, duro, mas sempre bonito ato de materializar algo que antes não existia. Por ser, ainda hoje, fã de coração cheio por este personagem, termino com um desenho do mesmo.
Cuidado com a marca do Z, abusadores do povo tremerão.
Redes Sociais