Uma viagem ao coração sombrio dos incansáveis anos 60 de Londres, A Noite Passada em Soho oferece um filme ambicioso, embora desconcertante, do argumentista Krysty Wilson-Cairns e do realizador Edgar Wright.
Ellie é uma aspirante a designer que adora tudo o que envolva os anos 60. Após conseguir entrar para a faculdade de moda em Londres, órfã de mãe, muda-se da pequena Cornualha, sozinha, para a grande cidade. A sua avó amorosa, no entanto, teme por ela, indiciando que Ellie é especial, tendo uma capacidade de pode ver e sentir emoções que os outros não podem. Uma espécie de forte ligação psíquica com o seu ambiente, o que na grande cidade de Londres pode ser assolador. Depois de receber uma receção menos calorosa dos seus colegas de faculdade, que fazem pouco do facto de ela vestir as roupas que a própria desenha, acaba por decidir ir morar sozinha. Ellie aluga um apartamento vintage de uma rígida, mas aparentemente atenciosa, Sra. Collins.
A primeira seção de A Noite Passada em Soho acontece ao ritmo de canções famosíssimas como “Downtown” de Petula Clark, “Got My Mind Set on You” de James Ray, e “A World Without Love” de Peter e Gordon, que vão de encontro às aventuras de Ellie por Londres. É refrescante ver a maneira como Wright não romantiza o filme. Ele mostra que este é um lugar de maldade misógina. Wright quer fazer este filme não apenas como um alerta contra a nostalgia cega, mas uma crítica aos homens sujos e tóxicos.
Em contraste com esta realidade, temos a jovem Ellie que é quase uma espécie de recém-nascido, deslumbrada com o que leu sobre a grande cidade e em busca de Londres que ouviu nas suas canções favoritas. É neste momento que a verdadeira premissa de A Noite Passada em Soho é introduzida. Que Ellie poderá se perder neste novo mundo.
Quando começa a ter sonhos em que vê Sandy, uma cantora loira que representa exatamente o tipo rapariga que Ellie idolatra, sendo forçada pelo o seu empresário Jack a fazer sexo por dinheiro com velhos assustadores, gradualmente, Ellie sente a sua identidade a fundir-se com a de Sandy. A dúvida instala-se: será que está a ter um colapso mental ou será que este pesadelo está realmente a acontecer?
Onde o filme de Wright começa a vacilar é com o seu vilão. Sandy está sob o olhar atento de Jack, um chulo que arranja raparigas bonitas com o pretexto de ser um agente que as pode representar e ajudar a conseguirem alcançar os seus sonhos de sucesso e fama, quando na realidade a sua clientela são homens nojentos, velhos, cheios de dinheiro para gastar. A premissa para o vilão é boa, na realidade até seria algo que facilmente enfureceria a audiência, mas enquanto Ellie passa a temê-lo, o público não. É incorreto dizer que o conceito de Jack não é o de um vilão odiável, mas Wright não conseguiu construir a personagem o suficiente para ser mais do que um bicho-papão.
A segunda metade filme, que se passa no tempo presente e que vê os fantasmas de Sandy a ultrapassarem essa barreira existencial e a começarem a perturbar o dia a dia de Ellie, é, surpreendentemente, a metade menos interessante do filme, particularmente no terceiro ato que se mostra estendido demais. É quase como se o filme tivesse esgotado todo o seu êxtase e o sentimento de horror com as alucinações vívidas dos anos 60, e às vezes falha em ser tão assustador quanto poderia ser. Ficamos a desejar mais, e um pouco perdidos no que realmente o enredo propõe.
Anya Taylor-Joy consegue que a sua personagem vá perdendo a sua potência no ecrã e comece aos poucos a ficar cada vez menos real, tornando-a quase como que uma boneca insuflável nas mãos daqueles homens. O único momento que poderia ser revelador e inesperado, porém, acaba por se perder num filme sem substância que se concentra demasiado no fator de choque e nos visuais arrojados do que em algo real.
Os engenhosos efeitos na câmara e a encenação permitem que as duas personagens se confundam e que se crie uma dinâmica atraente de dois lados da mesma moeda. Ao contrário da tímida Ellie, Sandy pavoneia-se com a confiança de uma modelo de passarela. Ela sabe o que quer, e acha que sabe como fazer isso, mas no final das contas, a história principal deveria ser a de Ellie, e esta parece incompleta.
Além dos temas iniciais, como fanatismo pelo passado e homens tóxicos, simplesmente não há o suficiente para carregar o filme. Wright não tem nada a dizer sobre a indústria do sexo nos bastidores do sucesso ou a saúde mental além de um entendimento a um nível superficial. Em vez disso, ele confia no humor absurdo, no sangue abundante e em homenagens a filmes muito melhores. Normalmente isso seria o suficiente, e tem sido no passado, mas a tonalidade não combina com os temas pesados do filme desta vez. Para além disso, o final não é surpreendente e parece mesmo ser contraditório, e a banda sonora recorre demasiado a músicas famosas com a intenção de atrair a pública, sem realmente se preocupar se são as mais adequadas, com a exceção de algumas letras que se parecem encaixar na ideia geral da cena, muitas vezes o instrumental salienta-se como deslocado e distrativo.
Em última análise, Wright desperdiça os aspetos mais fascinantes e comoventes de A Noite Passada em Soho, que na minha opinião envolvem a história da família de Ellie. Em vez disso, o filme ignora essas conexões. Não é péssimo, não é mau, consegue até ser cativante e deixar-nos curiosos para desvendar este mistério atemporal, a única conclusão é que fica aquém. Poderia ter sido um filme sobre tanto, mas na realidade A Noite Passada em Soho sacrifica substância pelo estilo, revelando assim o seu fim comercial em vez de artístico, oferecendo-nos pouco.
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