“Os sonhos dão boas histórias, mas tudo que é importante acontece quando estamos acordados”, diz Duncan Idaho (um sempre impressionante Jason Momoa), um dos mestres de luta de Paul (perfeitamente interpretado por Timothée Chalamet), a personagem principal de Dune, quando este lhe fala do sonho que teve em que Duncan iria morrer.
Esta é uma das muitas falas que começa por explicar um filme que muitos poderiam criticar por ser difícil de entender. No entanto, o espectador que esteja com atenção e se deixe levar pela história e mundo criados, primeiro por Frank Herbert, e agora com a ajuda do realizador Denis Villeneuve, sabe que não é esse o caso. Contrariamente a muitos dos filmes de ficção cientifica, a dificuldade da adaptação do livro Dune para o cinema reside não na espetacularidade das armas ou efeitos visuais, mas na tradução possível da complexidade da escrita e do enredo das páginas para o grande ecrã.
Denis Villeneuve, cujo impressionante currículo inclui Arrival e Blade Runner 2049, é o mais recente realizador a fazer a sua tentativa ousada de provar que o livro de Herbert pode não ser indefinível. Abrindo com as palavras “Parte Um” e encerrando com uma declaração de que “este é apenas o começo”, Dune de Villeneuve aborda sensatamente apenas uma parte da história, evitando as compressões narrativas desconcertantes e elipses que arruinaram a versão de Lynch, enquanto refreia os excessos extravagantes que frustraram Jodorowsky antes mesmo dele começar.
Villeneuve e os co-escritores, Jon Spaihts e Eric Roth, conseguem criar uma narrativa fiel ao livro, mas que ao mesmo tempo espelha os paralelos coloniais contemporâneos. Afinal de contas, esta é uma história em que senhores ricos e privilegiados lutam pelos recursos minerais numa vasta região arenosa que eles consideram hostil e perigosa, mas irresistivelmente lucrativa. Conseguem ver a ironia? Mas já voltamos a isso, por enquanto vamos perceber o que Dune nos introduz.
O ano é 10191 e a humanidade é governada por um Império planetário que rastreia e manipula as relações entre as casas nobres, mudando as famílias de um lado para outro de acordo com os caprichos do imperador. O favor agora parece pousar na Casa Atreides, que recebeu o “presente” do controlo e residência do planeta Arrakis, também conhecido como Duna, visto se tratar, nada mais nada menos, do que um grande deserto. Duna é o lar da especiaria (ou mélange/spice), uma substância vista pelos Fremen (habitantes do deserto) como “o alucinógeno sagrado que prolonga a vida”, mas colhido por estrangeiros pela sua capacidade de possibilitar viagens interestelares. Até agora colhida pela casa Harkonnen, o controlo do comércio desta especiaria é agora dado à casa Artreides, criando, inevitavelmente, tensão e guerra entre as duas, pois quem controla a sua produção fica consequentemente muito rico.
O duque Leto Atreides ( Oscar Isaac ) e a sua família, a concubina Lady Jessica (Rebecca Ferguson) e o seu filho e herdeiro ao trono, Paul, chegam ao planeta prontos para se aliarem com os Fremen. A população nativa desenvolveu maneiras de sobreviver no deserto, construindo “trajes destiladores” que reciclam a água do corpo e caminhando de maneiras estranhas para não atrair a atenção dos vermes da areia gigantes (cuidado com eles que ainda muito há para descobrir), que nadam sob a superfície do deserto, atormentando equipamentos de mineração de especiarias e engolindo qualquer coisa no caminho.
Antes que consigam sequer começar a trabalhar, o Barão Harkonnen (Stellan Skarsgård) e o seu exército liderado por Rabban (Dave Bautista), decidem atacar, mudando o curso da sorte da família Atreides. O plano, no entanto, pode não ter corrido tão bem como estariam à espera, pois houve algo que eles não levaram em consideração. O trabalho que a irmandade religiosa secreta, Bene Gesserit, da qual a mãe de Paul faz parte, tem andando a fazer ao longo de milénios e que parece ter culminado na criação do verdadeiro profeta: Paul, ou Lisan Al Gaib.
O aspeto religioso juntamente com político e o ambiental são os temas principais desta epopeia espacial, que insiste em criticar, desmistificar e humanizar. A incerteza do papel de Paul e da sua natureza de “o escolhido/salvador” é uma das âncoras que nos deixa a querer mais. As suas visões com a misteriosa Chani, interpretada por Zendaya, de forma subtil e acutilante em todos os seus 7 minutos de tempo de ecrã, são essenciais e editadas ao longo do filme de forma magistral. Para quem não leu os livros poderá ter ficado a desejar mais, mas não nos esquecemos que a importância de Chani está lá desde o início, por isso aguentem firme, pois se a segunda parte de Dune continuar ao mesmo nível da primeira, ainda veremos muito desta personagem fulcral e fascinante.
Como se pode perceber só por isto, Dune é complexo. E, novamente, esta é apenas a primeira parte, estabelecendo a exposição necessária para entender o que está a acontecer. O que é impressionante sobre este filme é como ele define tudo o que precisas saber de maneira direta, dando bastante contexto a frases bizarras como “Kwisatz Haderach” e “gom jabbar” para que qualquer pessoa que preste atenção possa acompanhar tudo. Também tem muito espaço para conversas longas e envolventes entre personagens, usando o espaço de forma eficiente para apresentar as relações entre elas. Villeneuve usa essas interações com moderação, às vezes com moderação a mais poder-se-ia dizer, e seria talvez a minha única crítica o filme, a de que por vezes falta um pouco de emoção, mas estes momentos são raros, na grande maioria do filme são as próprias personagens com as suas histórias pessoais, dentro da grande história que dão vida ao deserto.
Denis Villeneuve consegue finalmente quebrar o feitiço de “inadaptável” dado a Dune, entre muitos outros livros do género, abrindo assim a porta para tantas novas adaptações que poderiam estar na gaveta por serem consideradas impossíveis. E este é talvez o maior marco e legado de Dune. O começar uma nova era entusiasmante e empolgante.
Afinal não existe isso de ser demasiado denso ou ter demasiados detalhes para transmitir ao público. Não existe demasiada exposição de fundo antes de chegar à narrativa real. O que existe são histórias espetaculares à espera da oportunidade certa e do carinho e atenção que merecem. O filme, assim como o romance, não nos cativa passivamente, pelo contrário, faz-nos trabalhar um pouco pela sua compreensão, mas a recompensa é extraordinária.
Em última análise, é impressionante como um filme com alguns dos materiais mais densos da ficção científica, baseado em grande parte numa grande intriga política interestelar e com quase 3 horas de duração consegue transparecer tão leve, passando num instante e levando-nos a pensar que chegou o intervalo quando afinal começam os créditos.
O esforço que poderia ser necessário para estar com atenção é praticamente nulo, visto que o filme é desde o primeiro segundo um verdadeiro banquete para os olhos (e ouvidos, cortesia do genial Hans Zimmer). Desde a cinematografia, ao design dos espaços, das máquinas e do guarda-roupa, o design de som e ao diálogo, sem falar nas performances irrepreensíveis de cada um dos atores, Dune é uma obra de arte contemporânea, que sem dúvida marca uma nova era do género e cativa uma nova geração para uma história com décadas.
Como alguém que viu o filme no cinema e depois em casa, não há comparação possível. A primeira vez deve de facto ser no grande ecrã. A magistralidade de cada cena merece esse respeito, e a experiência é elevada a outro patamar. Enquanto que em casa se torna muito mais acolhedor e pessoal, a perda da virgindade neste caso quer-se numa sala cheia de gente e com o som bem alto.
Muito fica por dizer, mas não há melhor análise do que ver o filme pelos nossos próprios olhos. Para quem ficou com o bichinho (ou o verme da areia, talvez seja mais apropriado dizer, e cuidado com eles que muito ainda há para descobrir) e queira saber mais sobre a história de Dune e todas as reviravoltas que ainda vão acontecer, não desesperem! Não só teremos uma segunda parte em breve, que no seu enredo só melhora (acreditem em mim, eu li os livros), como temos inúmeros livros para nos satisfazerem a curiosidade até lá. Quem gostaria de perceber melhor o que se passa no primeiro tem ainda a nossa análise aqui, no vosso Café Mais Geek.
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