Jane Campion volta em força com o seu novo filme O Poder do Cão, sobre um cowboy a passar por uma crise de meia-idade existencial, e quem é que ela escolhe para o interpretar? Exatamente aquela pessoa que ninguém imaginava, Benedict Cumberbatch. Num género tipicamente americano, que à primeira vista pede um ator oposto ao que Benedict Cumberbatch nos oferece, é apenas quando nos aprofundamos na premissa e percebemos todas as camadas da personagem que percebemos que a escolha é precisamente a acertada. Ele é exatamente aquilo que o filme precisa para não ser mais do que duas horas de paisagens bonitas.
Coberto de sujeira da cabeça aos pés na maior parte do filme, ele encarna um personagem em uma crise, com uma necessidade constante de provar que é o líder mais macho e duro numa matilha de cowboys. Possivelmente para esconder a sua adoração e afeição pelo homem que o ensinou mais do que apenas como montar um cavalo. Phil (Cumberbatch) domina a hierarquia de qualquer sala em que esteja, por meio de comentários cruéis e uma irreverência em relação à autoridade. Os seus olhos são frios, o seu rosto impassível, a sua língua afiada. Numa reviravolta em relação às personagens peculiares e cativantes, cheias de personalidade e que o pública tende a gostar, que Cumberbatch interpretou no passado, Phill é escrito para ser detestável e para ao pouco nos ir conquistando, à medida que se dá a conhecer.
Phil é o yin para o yang de George (Jesse Plemons), o seu irmão que aquece os corações das audiências desde o primeiro minuto. Enquanto Phil é insensível e mesquinho, George é mais gentil e de fala mansa, muitas vezes à mercê das provocações do irmão. Quando para num restaurante para a ceia, Phil provoca duramente Rose (Kirsten Dunst), uma viúva que comanda o estabelecimento, e o filho Peter (Kodi Smit-McPhee, num papel extraordinário que o lança como um dos atores da sua geração mais promissores), que Phil intimida até que Peter sai perturbado do trabalho, deixando a mãe a chorar. George estende a mão para a confortar e acaba por se apaixonar por ela. Isso enfurece Phil, que leva a perda do seu irmão, a única pessoa por quem ainda tem alguma estima, para uma mulher muito mal. O resultado consiste num constante bullying a Peter, isto é, até que os dois começam a passar mais tempo juntos, e o rapaz começa a desconfiar dos segredos de Phil. A camaradagem improvável revela uma série de segredos e intenções ocultas, mudando o relacionamento de todos entre si.
Usando a Nova Zelândia para a Montana da década de 1920, Campion coloca este filme de cowboys calmo, mas raivoso, contra um fundo severo que é bonito e imponente. Para Peter, isso apresenta uma masculinidade endurecida que ele deve aprender a superar. Para Phil, essa natureza varrida pelo vento é uma fuga da vida de privilégios da qual ele não quer tomar parte. É nas costas de um cavalo que ele se encontra, e é nesses caminhos, passagens nas montanhas e rios escondidos que ele aprendeu a disfarçar os seus desejos.
A adaptação de Campion do romance de Thomas Savage de mesmo nome, remove muitos detalhes do livro e leva-o de volta aos seus elementos mais crus. A história de fundo é preenchida de forma rápida e resumida no diálogo, se é que alguma vez foi preenchida. Não há flashbacks, apenas algumas cenas de personagens compartilhando o seu passado entre si. Campion e o seu diretor de fotografia, Ari Wegner, escrevem estudos inteiros de personagens nos seus close ups. Dessa perspetiva, temos uma noção do que o elenco pode nunca verbalizar. Está na expressão de dor e pânico no rosto de Rose quando ela começa a beber depois de outra rodada de assédio de Phil. É nos olhares de aço que Peter atira em Phil, quando ele está a ser perseguido. É nos olhares baixos de George para o chão, sabendo que ele é impotente para parar os tormentos do seu irmão. É a raiva no rosto de Phil quando ele percebe que o seu relacionamento estreito com o seu irmão está a chegar ao fim, com o casamento de George com Rose.
Muitos dos filmes de Campion também focam na mudança da dinâmica de poder entre os personagens. Quem tem poder, quem o perde e como eles o recuperam. Em O Poder do Cão, a entrada de Rose na família é percebida como uma ameaça, um desafio à ordem estabelecida. Phil não é gentil com ela, astutamente criando um ambiente tóxico que a envenena, a fim de manter o poder sobre o seu irmão, os seus negócios e quem está no comando da sua mansão imponente. Ela é como uma ameaça existencial para ele. Ela representa o sexo que ele não deseja e alguém que ele ainda não tem sob controle. A trégua entre Phil e Peter enerva ainda mais Rose, com medo da influência que ele possa ter sobre o seu filho. Ela acaba por se perder para a bebida, e o filme torna-se numa dança fascinante entre todos eles, esperando para ver como tudo vai acabar quando a música parar.
Falando em música, O Poder do Cão contém alguns dos melhores usos da música em um filme este ano. O trabalho de Jonny Greenwood sublinha e enfatiza muitas das ações que ocorrem na tela, adicionando camadas extras de mau presságio ao longo das cenas de uma forma delirante.
Embora o filme comece em um ritmo suave, ele não dura muito tempo. Há tantos níveis de desejo, ódio e dominação que logo surgem para perturbar a paz inquieta de todos. O jogo de inteligência entre Phil e todos os outros é assustador de se assistir, e é exatamente o tipo de filme que cresce com cada nova visualização, encontrando nuances nas performances e na premissa que nos deixam no chão.
O Poder do Cão recebeu 12 nomeações para os Oscars 2022, incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Ator.
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