Ando de bolso cheio.
Cheio de ideias e letras, de personagens e momentos, de sítios que ainda não visitei. Lugares desconhecidos, criados por vozes conhecidas e que, mais tarde ou mais cedo, me vão sair do bolso direitinhos para aquele espaço do cérebro onde a imaginação e a memória se juntam, de quando em vez, para tomar um copo.
Entre o negro do bolso e a o cinzento da massa que me enche a cabeça, a viagem é a longa. Não é coisa que se faça de um dia para o outro o que, não posso deixar de admitir, causa alguns problemas. Num espaço tão exíguo, o conforto não abunda. Percebo, por isso, que a Dulce Maria Cardoso se incomode, coitada, com o viçoso e farfalhudo bigode do Camilo Castelo Branco sempre pronto a vazar-lhe uma vista. Ou que o semblante carregado do Saramago se adense ainda mais por passar a vida espalmado contra o rosto sorridente do Gabriel Garcia Márquez. Não é bonita a forma como trato quem já me deu tanto, mas…
Contam-se pelos dedos de uma mão os livros do José Saramago que posso ler, que posso experienciar, pela primeira vez. Devo abrir já mão desse privilégio? Eu acho que não. É por isso que o Nobel terá de se habituar a ir vivendo no meu bolso. É chato, mas também é garantido que um dia vai voltar a sair. O Camilo, por exemplo, já lá está há alguns anos, e tem se dado maravilhosamente. Cada saída sua é uma lição de metalurgia linguística, dada por um senhor que com tenazes de veludo dobra e forja a língua portuguesa à sua vontade. E se é verdade que sai mais a amiúde que os outros, garanto que não é uma questão de favoritismo. É só porque a obra do mestre e o meu desconhecimento são grandes o suficiente para me dar a esse luxo.
Às vezes penso que, nisto de colocar livros e autores no bolso para mais tarde desfrutar, talvez tenha sido injusto com a Dulce Maria Cardoso. Afinal de contas, o número de livros publicados por Garcia Márquez não vai (infelizmente) aumentar, mas esse não é o caso da autora de Eliete. A minha defesa é cobarde e pouco agradecida, mas eficaz: a culpa é da autora. Culpa dela por publicar tão pouco, culpa dela por escrever tão bem. Culpa dela por ser a melhor escritora de língua portuguesa viva. Não posso fazer nada quanto a isto, lamento. A Dulce tem mesmo de ir para o bolso. Os seus livros são demasiado bons, dão demasiado prazer para se desperdiçarem primeiras leituras de forma apressada e leviana. Campo de Sangue e Tudo são histórias de amor terão de esperar.
Os lugares e os tempos, presos entre as páginas dos livros que ainda não li, prometem.
Arquitetados por aqueles que no passado me levaram, por entre as suas linhas de ouro, às melhores experiências literárias que tive, parecem existir só para me tentar. A custo resisto, da mesma forma que um garoto se obriga a comer os vegetais primeiro antes de passar para a parte saborosa da refeição. Enquanto resisto, o bolso, esse, vai ficando cada vez mais cheio.
Ainda bem!
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