Porque eu gosto de começar todos os textos fingindo que sou muito mais inteligente e culto do que aquilo que de facto sou, hoje começamos com uma referência a um teórico literário francês. Se o leitor tiver nem que seja 2% da atitude de todos os críticos de cinema do Público, sei que ler as palavras “teórico literário francês” mexeu consigo a um nível íntimo.
Infelizmente para si, eu além de me armar em esperto, também gosto muito de ser uma besta. Por isso, reformulando: hoje começamos com uma referência a um famoso teórico literário francês. Agora que esmagámos o Luís Miguel Oliveira que há em si, vamos prosseguir.
Algures num século que não é o nosso (não cheguei ao fim do artigo da Wikipédia por isso não posso precisar), um critico literário francês anafado postulou o seguinte: a critica a uma obra literária deve fazer a distinção entre a obra e o autor. Ou seja, para a análise e fruição de uma obra não interessa se o autor é pescador ou se teve vinte mulheres. Nem sequer se o autor teve vinte mulheres que, por acaso, pescou. O texto deve valer por si.
Este autor, a quem os pais chamaram Roland Barthes, mas a quem gosto de chamar Bartinho, levanta uma questão que nos dias de hoje é cada vez mais relevante.
(Numa próxima crónica têm de me ajudar a perceber, por que raio, é que os autores apenas levantam questões. Nunca baixam, mexem ou empurram questões, mas estão, constantemente, a levantá-las. Estranho).
Vamos ao caso mais gritante dos últimos meses: J. K. Rowling.
Como não estamos aqui para discutir política, vamos partir do princípio que todos concordamos que as suas posições no que à comunidade trans diz respeito são erradas.
Devem deixar de ler Harry Potter por isso? Devem passar a incorporar este dado em cada re-leitura e dar esta camada extra de significado ao texto? Ou devem continuar a ler o texto pelo que ele é e, sobretudo, por aquilo que ele é para vocês?
Como já devem calcular (porque este truque de a última questão ser aquela com que o cronista concorda está longe de ser novo), eu acho que as posições, acções e afiliações de um autor são absolutamente indiferentes para o usufruto de uma obra. A “Morte do Autor”, como lhe chamou Barthes parece-me a única forma de saudável de nos relacionarmos com a arte.
A obra vale por si. Ou melhor, por si e por ti. Um livro, um quadro uma qualquer peça de arte tem apenas sempre duas dimensões fixas: a do texto (pelo texto) e a que o leitor lhe confere ao ler o mesmo com base nas suas experiências, interesses, hábitos e vida.
Fazer esta separação não torna o leitor conivente, acéfalo ou muito menos apolítico. Podemos admirar um artista pela sua obra e desprezá-lo, criticá-lo e atacá-lo pelas suas atitudes.
Porquê? Porque salvo raras excepções (que são na maioria dos casos bastante fáceis de descobrir à priori,) a obra e o autor não têm nada a ver. Por exemplo, o leitor é a favor do homicídio? Acredito que não. Mas gosta – porque eu sei que é culto, dado à arte erudita e capaz de perceber que lhe estou a dar graxa – e é capaz de se emocionar e reconhecer o talento do trabalho do conhecido pintor e assassino Caravaggio, não é?
Se ambas as suposições são verdade, só podemos concluir uma coisa: a força de uma boa obra (especialmente uma que perdura pelos séculos) reside somente na obra. Está a montante do autor e das suas ações. E é por isso que, saibamos ou não dos seus crimes, pecados e pecadilhos nos continuamos a comover (em sentido lato) com “O Pianista”, com o Annie Hall e com todos os livros de Harry Potter.
Respeito todas as opiniões em contrário mas, caro leitor, para mim a única forma de viver a arte é com uma sentença de morte à mão.
Morte ao autor.
Longa vida à obra!
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