A analise que estão prestes a ler debruça-se sobre a nova edição, pela mão da Cultura Editora, de “O Triunfo dos Porcos” de George Orwell. Para esmiuçar da melhor forma esta obra-prima, o Café Mais Geek achou por bem chamar-me a mim. É uma escolha que se percebe. De um lado a escrita fresca e sempre relevante de um génio, do outro um tipo que ainda ontem foi reconhecido como um “sujeitinho jagunço e suburbano” (numa das mais belas demonstrações de amor materno de sempre). Faz todo o sentido.
Para ser justo com a direção deste estabelecimento, qualquer pessoa que se atravesse a “analisar” esta simpática nova edição de um clássico absoluto, teria de ser ou muito arrogante ou muito estúpido. Felizmente, sou ambas as coisas e posso, por isso, colocar os meus serviços à disposição de todos.
Quando lemos pela primeira vez (como foi o caso) um dos livros que “toda a gente tem de ler antes de falecer”, existe uma posição autoimposta (mas óbvia) para percebermos imediatamente porque é que a obra em mãos faz parte do cânone essencial da literatura. Por outras palavras, há uma pressão acrescida para não reagir como calhau com olhos. Nalguns clássicos, é difícil de perceber o porquê de todo o alarido. Em “O Triunfo dos Porcos”, o que custa a perceber é porque é que não há ainda mais barulho à volta deste texto.
Como é que um livro tão pequeno (156 páginas) pode ter tanta coisa lá dentro? Durante anos, achei que era esta obrigação de “perceber o clássico” que alimentava o mito de que tudo em “O Triunfo dos Porcos” era muito profundo e cheio de significado, que tornava este pequeno tomo sobre porcos, cães, vacas e cavalos num manancial de significados. Hoje, vejo-me obrigado a reconhecer a minha burrice.
Vou deixar o paralelismo com a ditadura soviética de lado porque, além de óbvio, é assunto que me deixa indigesto. O que mais me cativou nesta fábula foi a capacidade de Orwell de mostrar a construção e a importância do mito em sociedade sempre de uma forma orgânica, interessante e cristalina. Logo após a conquista da quinta por parte dos animais, uma das primeiras necessidades sentidas passa pela criação da sua nova narrativa. O malvado Sr. Silva (ou Jones no original, mas falamos sobre isso mais à frente) está fora de cena e é preciso imaginar uma nova vida. Mesmo antes de tratar das colheitas, mesmo antes de garantir melhores condições de vida, a necessidade número um é mudar o nome da quinta, dar-lhe uma bandeira e um hino. Porquê? Bem, ao que parece, os animais são como nós (ou nós como eles). Também precisam de ficções para viver, ficções em que acreditar, ficções com as quais regrar a vida e com as quais podem construir novos significados e evoluir. (E este semi-piscar de olho aos livros da moda do Yuval Noah Harari? Foi uma tentativa desesperada de parecer mais culto do que o que sou? Foi, desculpem).
Que dessa construção mitológica (seja em versão pré-revolução ou versão ditatorial) desenhada a regra e esquadro para a conveniência dos porcos que estão no poder, surja uma ditadura não é uma surpresa para ninguém. A não ser, claro, para aquele vosso tio que acha que é mesmo boa ideia votar no Chega.
E por falar em situações lideradas por porcos ignóbeis, a forma como Orwell nos mostra a construção de uma ditadura por dentro é brilhante. Lenta e insidiosamente, passo a passo, medida a medida, spin a spin, a utopia vai se transformando num pesadelo. Este lento avançar rumo ao abismo é tão atual, que é difícil ler este livro e não pensar no clima político de Portugal. Posto de forma ainda mais óbvia: Ninguém se deita numa democracia e acorda numa ditadura. Os regimes tirânicos são como a gordura abdominal. Chegam devagarinho, aos poucos e poucos, e quase sem nos apercebermos, mas depois de estarem instalados é muito difícil de os fazer sair. É este sebo nojento, de um autoritarismo regrado pelo interesse próprio, que Orwell descreve magistralmente.
Porque quero acabar com uma nota um bocadinho mais alegre do que “cuidado com os porcos que há por aí”, deixem-me tirar o chapéu à tradução de Pedro Rodrigues. A tradução de nomes para português (estou a olhar para ti pessoa que achou por bem publicar livros do “Leão Tolstói”) costuma ser algo que me irrita profundamente. Neste caso, funciona. Ao traduzir os nomes para português, além de conferir à fabula um tom mais próximo de casa, o tradutor consegue o feito de dar nova camada de significado a alguns dos personagens, como é o caso do Boxer, perdão, do Sansão. Isso, e o facto de nos permitir ler a expressão “Maravilha da Bairrada”.
Por fim leitor, uma questão desagradável: um dia vai falecer. Eu, muito contra minha vontade, também parece que não me vou safar. Mas tenho para mim que George Orwell, apesar do seu longo confinamento no campo dos falecidos, vai continuar vivo, perspicaz e relevante por muito tempo. É a vida.
Afinal de contas, todos os homens são iguais, mas há génios que são muito mais iguais que os outros.
Esta análise foi possível com o apoio da Cultura Editora!
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