Debaixo do colete desabotoado e da camisa aberta, emergiam os músculos abdominais, que pareciam um enorme rolo de carne amarrado com fios. E, continuando as associações relacionadas com carnes, os bíceps da guarda eram do tamanho de presuntos suínos.
– Andrzej Sapkowski em Tempos de Tempestade
Estou pronto a admitir que a frase que veêm citada em cima não é o tipo de conteúdo que estariam a espera que fosse destacado numa crítica a um livro de fantasia. Acontece que ao ler o recentemente publicado Tempos de Tempestade, o novo volume na saga The Witcher, editado pela Saída de Emergência, este foi um dos pontos que me chamou a atenção.
Não as associações com chicha per se (embora, no campo das referências de comestíveis suínos, esta quote esteja lá para cima na minha lista), mas o sentido de humor de Sapkowski. Há um humor e uma ironia fina que percorrem o texto e que nos surpreendem várias vezes.
Normalmente, se num livro de fantasia se deparam com algo cómico só têm duas opções: ou a piada foi dita por uma personagem tipo bobo ou por aquela personagem fria e sarcástica que carrega todo o escárnio de um livro (e às vezes de sagas inteiras) às costas. Humor fora destes contextos em épicos de fantasia existe, mas é raro. Mais raro ainda é o que Sapkowski faz neste livro (bem ilustrado no carnudo exemplo que observam em cima), em que em plena descrição de novos personagens e situações, o autor se dedica a brincadeiras de linguagem auto-depreciativas. Com toda a sinceridade, e para continuar na senda de exemplos alimentares, este tipo de coisa sabe-me a pato.
Feito este introito vamos ao que interessa! Se são fãs de The Witcher, têm de ler este livro. O mundo continua tão cativante, rico e palpável como sempre, e entre as tramas da narrativa, os diálogos de Jaskier (ou Dandelion para os amigos vindos dos jogos) e o prestígio canastrão de elevado gabarito do melhor utilizador de joalharia lupina, há muito por onde gostar e revisitar.
Para os que não conhecem a saga (ou que só a conhecem através dos jogos ou da série da Netflix), este pode ser um bom ponto de começo para vocês. Apesar de este ser, tecnicamente, o nono volume, o facto de ser uma prequela e se passar antes da trama principal faz com que esta seja uma boa opção de entrada no mundo (literário) de Witcher. Notem é uma boa opção, mas não é a melhor. Isto porque, pessoalmente, continuo a defender que façam o caminho de “A a Z”, começando pelo primeiro volume e indo por aí fora. Apesar de esta ser uma boa porta de entrada, num mundo tão detalhadamente construído, há sempre pormenores que aproveitamos melhor depois de o conhecer de forma mais profunda.
Por fim, só me resta ser desagradável para com a Saída de Emergência.
Na contracapa de Tempos de Tempestade, a editora descreve o seu autor como o “melhor escritor contemporâneo de fantasia”. Eu percebo o porque do epiteto, de facto Sapkowski é um ótimo escritor, mas não ficaria de bem comigo mesmo se não acabasse esta crónica referindo que o verdadeiro “melhor escritor contemporâneo de fantasia” tem outro nome e também é editado pela Saída de Emergência, mais sobre isso aqui.
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