Black Mirror – Temporada 6
Publicado a 04 Ago, 2023

A célebre obra televisiva Black Mirror conquistou fervorosos adeptos por todo o mundo com as suas narrativas provocadoras e inquietantes, que exploram os impactos da tecnologia na sociedade.

Entretanto, a última temporada, composta por cinco episódios, trouxe consigo algumas transformações em relação às anteriores. A crítica principal dirigida a Black Mirror é que, ao longo do tempo, parte da sua identidade original foi perdida. Nas primeiras cinco temporadas, a série era reconhecida como uma obra de ficção científica que desvelava os perigos tecnológicos. O tom, geralmente sombrio, abalava o espectador com desfechos marcantes, causando um desconforto visceral, enquanto o humor negro peculiar de Charlie Brooker acentuava tal sensação. No entanto, embora nos últimos quatro anos, o mundo real tenha oferecido inspirações distópicas em abundância: uma pandemia mortal, NFTs, criptomoedas, o lançamento do ChatGPT e o subsequente pânico em relação à inteligência artificial, parece que Brooker (o criador da série) se terá cansado de se basear em manchetes alarmantes.

A mais recente sexta temporada de Black Mirror diverge grandemente do que foi apresentado previamente. Brooker expressa o desejo de “abandonar algumas das premissas fundamentais que caracterizam um episódio de Black Mirror“. Assim, enquanto os dois primeiros episódios, “Joan is awful” e “Loch Henry”, exploram fenómenos atuais relacionados ao streaming, algo que parece estar no topo das preocupações de Brooker; os dois últimos episódios, “Mazey Day” e “Demon 79”, são verdadeiras histórias de terror, restando-nos o terceiro episódio, “Beyond the Sea”, como o típico drama emocionante de Black Mirror.

Dessa forma, que histórias nos reserva a nova temporada?

“Joan is awful” é o episódio mais clássico de Black Mirror nesta nova temporada, apresentando um mundo onde a produção televisiva é acelerada e um episódio pode ser criado e lançado num único dia com o auxílio da inteligência artificial. Joan, interpretada por Annie Murphy, descobre que a sua vida se tornou o enredo de uma série de streaming sem o seu consentimento, suscitando questões sobre privacidade e manipulação de dados. Embora introspectivo na sua abordagem, o episódio funciona como um alerta, com os criadores de Black Mirror a criticar a indústria do entretenimento e a falta de controlo sobre os nossos próprios dados pessoais.

“Loch Henry”, o segundo episódio da temporada, explora os perigos de explorar o próprio trauma para alimentar a máquina de conteúdo. Davis, um estudante de cinema apaixonado, e a namorada Pia, visitam a sua cidade natal na Escócia para fazer um documentário. Pia convence Davis a abandonar um projeto mais positivo e a concentrar-se numa série de assassinatos que ocorreram naquele lugar anos atrás, mesmo que o assassino tenha indiretamente causado a morte do pai de Davis. O episódio critica a natureza exploratória do crime real, mas acaba-se por transformar numa espécie de “tortura psicológica”, deixando uma sensação de tristeza e vazio ao final, onde Davis sacrifica tudo o que é importante para ele em prol do Streamberry.

“Beyond the Sea” é um episódio ambientado na década de 1960, durante a corrida espacial, com uma atmosfera cinematográfica que evoca o estilo de Kubrick. Dirigido por John Crowley e com 80 minutos de duração, o episódio aborda a masculinidade tóxica, tanto na Terra quanto no espaço. Utilizando a tecnologia característica de Black Mirror, os astronautas Cliff (interpretado por Aaron Paul) e David (interpretado por Josh Hartnett) transmitem as suas consciências de volta à Terra para vivenciarem as suas vidas familiares, criando cópias robóticas dos seus corpos. Após um evento trágico, a missão espacial é ameaçada pela profunda depressão de David. O episódio apresenta uma fotografia deslumbrante e destaca a atuação emocional de Aaron Paul, alternando entre os personagens Cliff e David.

Os dois últimos episódios de Black Mirror rompem com os temas históricos da série, ambientando-se no passado e não envolvendo novas tecnologias. “Mazey Day”, o penúltimo episódio, foi estranho e fora do comum, mas o seu desfecho surpreendente e inteligente compensou essa derivação do esperado. Situado nos anos 2000, acompanhamos a paparazza Bo perseguindo a atriz Mazey Day, desaparecida após um acidente. A reviravolta final acrescenta um toque impactante, tornando a mensagem sobre a privacidade das celebridades ainda mais significativa.

O episódio final da temporada de Black Mirror, intitulado “Demon 79”, traz uma trama de terror. Nida, uma tímida funcionária duma loja de sapatos na Inglaterra, é forçada a almoçar no porão após ser vítima de racismo. Um corte no dedo traz à tona um demónio chamado Gaap, que exige que Nida mate três pessoas em três dias para salvar o mundo do apocalipse. Embora o episódio seja uma mudança deliberada em relação ao estilo clássico de Black Mirror, acaba evocando elementos do episódio piloto da série.

No conjunto, a coleção de novos episódios revela-se aceitável. Contudo, é improvável que algum deles se eternize na memória. Não há um que se destaque como a joia rara do melhor que Black Mirror pode oferecer, aquele que desequilibra o espectador, desnuda horrores ignorados e nos leva a desesperadamente recalibrar os nossos princípios morais. Porém, para quem anseia pela sua dose de desespero, tem sempre as notícias.

Black Mirror
Black Mirror
Bom
Criador:
Premiere: 15 de junho 2023
Temporada: 6
Distribuição:
7.5
Escrito por:
João Simões
Viajante perdido à procura de sentido nas respostas dos outros. O personagem do Forky no Toy Story 4 em plena crise existencial é o meu animal espiritual. Quando ganhar um Óscar agradeço pelo meio à Cris e ao Ed se não me despedirem até lá.