Tudo começa em 1959 com Frank Herbert, um escritor freelance com uma afinidade pela ecologia, a ser contratado para escrever uma pequena história sobre o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e o seu programa para estabilizar as areias movediças através da introdução de relva de praia europeia. Fascinado pela forma como os ventos fortes do Pacífico moviam as dunas, enterrando tudo pelo caminho, o autor escrevia “Estas ondas [de areia] podem ser tão devastadoras quanto um maremoto… podem até causar mortes”. Mas acima de tudo, Herbert intrigava-se com a ideia de que seria possível projetar um ecossistema, tornar verde uma paisagem hostil de deserto. E aqui nasce a primeira ideia da sua obra épica, Dune.
Outro elemento também necessário ao nascimento de Dune, vem da sua experiência na guerra. Durante 8 meses, serviu como fotógrafo naval, antes de receber uma dispensa médica, o que lhe deu a oportunidade de observar em primeira mão, grande parte do conflito, e, posteriormente, o seu breve interlúdio em Washington, como redator de discursos para um senador republicano, comparecendo às audiências diárias do exército. E de facto, esta influência e intriga política é, juntamente com a ideologia ambiental própria de Herbert, a âncora de Dune. O resultado é uma observação crítica da cultura e estado sociopolítico da altura com um traço de futurismo utópico.
Rapidamente a pesquisa de Herbert sobre as dunas tornou-se uma pesquisa sobre desertos e culturas desérticas que culminaram em dois romances curtos de de ficção científica, publicados na Analog Science Fact & Fiction, uma das revistas de género mais prestigiadas na altura. Insatisfeito, Herbert retrabalhou diligentemente nestas duas histórias e juntou-as num único e gigantesco livro épico, contrariamente ao que lhe foi sugerido pela editora que insistia que os seus leitores gostavam de suas histórias curtas. O livro acaba por reunir por volta de 400 páginas na sua primeira edição de capa dura, o que o faz ser rejeitado por mais de 20 editoras antes de ser aceite por Chilton.
Embora Dune venha depois a ganhar os prémios Nebula e Hugo, os dois prémios de ficção científica de maior prestígio, não foi um sucesso comercial da noite para o dia. A sua base de fãs cresceu ao longo dos anos 60 e 70, e, cinquenta anos depois, é considerado por muitos como o maior romance do género de ficção científica e já foi vendido aos milhões em todo o mundo.
Dune passa-se num futuro distante, onde casas nobres guerreiras são mantidas na linha por um impiedoso imperador galáctico. Como parte de uma intriga política bizantina, o nobre duque Leto, chefe da Casa Atreides, um nome com origem grega que desde logo indicia o carater homérico da história, é forçado a mudar a sua família de Caladan, o seu planeta natal paradisíaco, para o planeta deserto Arrakis, coloquialmente conhecido como Duna. O clima em Duna é assustadoramente hostil. A água é tão escassa que, sempre que seus habitantes saem de casa, devem usar trajes destiladores, roupas justas que capturam a humidade do corpo e a reciclam para se conseguir beber.
O conflito começa pelo facto da mudança dos Atreides para Arrakis a mando do imperador implicar a saída da Casa Harkonnen, liderada pelo Barão, que até então explorava o planeta com um punho de ferro. Revoltados com a sua retirada, a Casa Harkonnen jura vingar-se dos Artreides e recuperar o que considerem ser seu.
O facto é que apesar do seu clima terrível e do seu povo nómada, Arrakis tem uma importância estratégica incalculável: o seu grande deserto é o único lugar na galáxia onde uma mercadoria fantasticamente valiosa chamada “mélange” ou “spice” é extraída. A “especiaria” é uma droga, cujas muitas propriedades úteis incluem a indução de um tipo de perceção de espaço-tempo aprimorada em pilotos de espaçonaves interestelares. Sem ela, todo o sistema de comunicação e transporte do Imperium entraria em colapso. No entanto, como não haveria deixar de ser, tem consequências: é altamente viciante. A mineração desta especiaria é perigosa, não apenas por causa das tempestades de areia e ataques dos nómadas, os fantasticamente cativantes Fremen, mas acima de tudo porque qualquer barulho ou movimentação na areia atrai vermes da areia gigantes, com centenas de metros de comprimento que viajam pelas dunas como baleias no oceano.
A história desenvolve-se depois a partir daí. A nossa personagem principal, o jovem Paul, filho do duque Leto e Lady Jessica, sucessor ao trono Artreides, muda-se para Arrakis com a família. Traição e tragédia seguem-se, e o jovem Paul sobrevive a um banho de sangue geral que o leva a fugir para o perigoso deserto em que, acompanhado pela mãe, a enigmática e misteriosa Lady Jessica, tem de arranjar forma de sobreviver, o que culmina no seu encontro com os Fremen.
Este encontro é fundamental para a história e introduz o terceiro grande tema de Dune: a religião. Herbert usa os Fremen, uma sociedade tribal de estilo beduíno para ilustrar a justaposição entre o desejo dos humanos de controlar o seu meio ambiente para o seu próprio benefício e a necessidade de preservar o meio ambiente que mantém a sua cultura. No entanto, utiliza também a cultura Fremen, que cultivou os seus próprios mitos sobre o messias, para a comparar com as outras religiões abordadas no livro.
A religião é usada como uma crítica contra a tendência do ser humano em colocar as suas esperanças e o poder nas mãos de um líder religioso carismático. Tal como a maioria dos livros de fantasia, que promovem a ideia de um escolhido, o personagem principal, conhecido como Muad’Dib (o rato do deserto), encaixa-se no molde da jornada do herói clássico que cai em desgraça, passa por tribulações e retorna para conquistar os seus inimigos. A diferença aqui é que Paul pode não ser a figura do messias, mas simplesmente um homem a desempenhar um papel necessário para a sua própria sobrevivência. Resta pouca dúvida no romance sobre as habilidades metafísicas que Paul possui, no entanto Herbert introduz sempre uma ambiguidade (num golpe magistral de narrativa) sobre a certeza de Paul realmente ser ou não essa figura divina da profecia. Algo que é especialmente angustiante para Paul, no seu caminho pessoal de descoberta.
O personagem mais próximo que recebe um arco significativo é Jessica. A mãe de Paul faz parte de uma irmandade religiosa chamada Bene Gesserit, uma sociedade feminina secreta com ambições políticas próprias e que contrasta com uma ordem galáctica patriarcal. Consideradas como bruxas e psiquicamente poderosas, as irmãs têm vindo ao longo de milénios a criar o seu próprio messias através de programação eugénica. Isto é, de cruzamentos genéticos entre potenciais candidatos, de modo a, pouco a pouco, de geração em geração, produzir alguém com habilidades especiais. Habilidades essas que aparentemente começam a aparecer em Paul, que se vê no meio, não só de uma intriga política intergaláctica e numa crise ambiental, mas agora também no meio de duas profecias, uma mais mitológica e outra fabricada, que não lhe dão descanso, impondo em si a responsabilidade de todo o futuro.
É importante notar que Dune é um livro antigo. Desse modo, é talvez alarmante à luz dos dias de hoje, vermos Paul, um jovem branco, como uma espécie de salvador colonial, que se torna um rei-deus para um povo tribal. No entanto, o que distingue Dune é a sinceridade da identificação de Herbert com os Fremen. Eles são o centro moral do livro, não uma massa ignorante a ser civilizada. Paul não os transforma à sua imagem, mas participa na sua cultura e transforma-se no profeta Muad’Dib. Conforme o destino de Paul se torna claro para ele, começa a ter visões “de legiões fanáticas seguindo a bandeira verde e preta dos Atreides, destruindo e queimando todo o universo em nome do seu profeta Muad’Dib”, e é-nos introduzida a ideia de extremismo religioso. Quão ténue é a linha que separa a salvação da perdição. Se Paul aceitar este destino, ele será responsável por todo o futuro sangrento que profetiza, para o bem e para o mal, e sem dúvida que esse aspeto acrescenta uma densidade e profundidade religiosa, e emocional ao já complexo clima ambiental e político do livro.
As escolhas de Herbert de desobedecer a certas restrições do género de ficção científica são interessantes. Desafiando o padrão da ficção científica, o autor concentra-se na aceleração da genética humana e no potencial mental e físico dos humanos. Desde os Mentats (humanos treinados para alcançar o poder de processamento de supercomputadores) à irmandade Bene Gesserit (cujas personagens femininas são surpreendentemente fortes e ativas), os humanos são biologicamente avançados, muito à frente das naves espaciais e das armas laser encontradas em outras histórias semelhantes.
Finalmente, como é comum de qualquer bom livro de fantasia, Dune reflete o lugar e o tempo que o produziu. As preocupações deste livro são a crise ambiental, o potencial humano, o fanatismo religioso, a revolução dos países em desenvolvimento contra o imperialismo. Temas que, infelizmente, parecem continuar tão ou mais relevantes nos dias de hoje, o que o torna sem dúvida cativante de ler, mas ao mesmo tempo nos faz pensar o quão triste é que o progresso pareça não avançar à mesma velocidade que a passagem de tempo.
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