No início de 2025, decidi embarcar numa leitura inesperada. Durante o Fórum Fantástico de 2024, ganhei um exemplar de Mickey7, um livro de Edward Ashton que, até então, desconhecia. Mas quando percebi que Mickey 17, o novo filme de Bong Joon-ho, era inspirado nesta obra, decidi explorá-la antes da estreia.
E essa experiência revelou-se fascinante. O livro e o filme partilham a mesma premissa: Mickey é um “dispensável”, um humano clonado que pode morrer e ser recriado com as suas memórias intactas, sendo usado para missões de alto risco. Mas apesar de partirem do mesmo conceito, as duas versões desenvolvem a narrativa de formas distintas.
A grande questão não é se as mudanças foram positivas ou negativas, mas sim como elas transformam a experiência. E, no meu caso, essas diferenças tornaram a adaptação ainda mais interessante.
Uma das transformações mais notáveis entre livro e filme está na forma como os personagens são construídos. Bong Joon-ho não se limitou a adaptar a história – ele remodelou as dinâmicas e os traços das figuras centrais para servir a sua visão cinematográfica.
A jornada de Mickey continua a ser o eixo da narrativa, mas a forma como ele encara a sua existência e interage com os outros mudou. Enquanto o livro tem um tom mais introspetivo e explora as crises internas do protagonista, o filme oferece-lhe um ritmo mais dinâmico, tornando-o uma peça mais ativa na crítica social que o realizador quer explorar.
As relações interpessoais também são diferentes, refletindo perspetivas distintas sobre a exploração humana, a hierarquia e o poder. Algumas personagens assumem papéis mais políticos e satíricos, enquanto outras se tornam essenciais para amplificar o impacto emocional da narrativa. São mudanças que alteram o percurso da história, mas sem desvirtuar a sua essência.
Uma adaptação nunca será um reflexo exato do material original, e isso não precisa de ser algo negativo. Em vez de tentar copiar Mickey7 para o ecrã, Mickey 17 reinventa a forma como a história é sentida, oferecendo uma nova abordagem ao conceito do dispensável.
Enquanto lia o livro, senti-me mergulhado numa ficção científica mais intimista, onde a narrativa era impulsionada pelo protagonista e pelos seus dilemas internos. No filme, a experiência foi diferente – mais carregada de subtexto, crítica social e uma estrutura narrativa que coloca em primeiro plano as dinâmicas coletivas dentro da colónia.
Essa mudança de foco não torna um melhor do que o outro, apenas diferentes. Bong Joon-ho usa a sua linguagem cinematográfica para expandir a história, sem perder o impacto do conceito original.
Se há algo que faz com que Mickey 17 funcione, é a assinatura do realizador. Bong Joon-ho tem a capacidade única de equilibrar entretenimento com uma crítica social poderosa, e isso reflete-se tanto no tom do filme como nas interações entre as personagens.
A cinematografia e os efeitos especiais criam um mundo visualmente imersivo, onde cada detalhe contribui para reforçar a mensagem do filme. A história mantém a essência do livro, mas ao mesmo tempo reformula-a para oferecer uma experiência que pode cativar tanto quem já conhece Mickey7 como quem entra neste universo pela primeira vez.
Para quem leu o livro, algumas mudanças podem ser inesperadas. Mas, em vez de afastar o público, estas alterações tornam a adaptação mais orgânica dentro do estilo do realizador, mantendo um equilíbrio entre novidade e familiaridade.
Mickey 17 é um excelente exemplo de como uma adaptação pode respeitar o material original sem se limitar a ele. Bong Joon-ho transforma a premissa do livro numa experiência cinematográfica única, mantendo a essência da história enquanto a molda para um novo público e uma nova linguagem narrativa.
Se procuras um filme de ficção científica inteligente, que mistura filosofia, sátira e um toque de ação, esta é uma aposta segura. Se já leste o livro, entra nesta experiência com a mente aberta – as mudanças não desvalorizam a história, apenas a reinterpretam para um novo formato.
E no final, a pergunta central continua a mesma: será que uma vida clonada continua a ser uma vida? Ou já vivemos num sistema onde a individualidade é cada vez mais dispensável?
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