Estava algo reticente em relação a este O Poder, principalmente por pouco ou nada saber em relação ao material de origem, baseado no livro homónimo de Naomi Alderman, mas ainda assim tenho noção que muito raramente estas adaptações se acabam por safar.
Apesar do meu conhecimento ser reduzido, saber que em 2017 o seu livro ganhou um dos prémios literários mais prestigiados do Reino Unido, e a autora teve tutelagem de Margaret Atwood (que bem conhecemos de títulos adaptados a série como The Handmaid’s Tale ou, mais recentemente, Alias Grace), ajuda a dar algum prestígio ao que Alderman criou. É assim com um olhar desprendido da obra original, que me deixo envolver nesta nova aposta da Amazon.
O começo não é propriamente o melhor, não que exista algum problema propriamente dito, mas há alguma lentidão na narrativa, sem haver uma necessidade real para tal acontecer. O primeiro e quase a totalidade do segundo episódio deixam-se enrolar por muito tempo, e acredito que vá perder alguns espectadores que precisam de algo mais imediato para ficar agarrados. Não há nada de muito novo neste cenário que vá exigir de nós tempo de assimilação. Isto é, até há, mas nada que seja difícil de compreender.
O mundo onde toda a trama tem lugar é a realidade que todos nós já conhecemos, existe agora é um fator fraturante que vai quebrar com a dinâmica de género atual e abrir a discussão para o que isso representa para a sociedade.
Esse fator manifesta-se única e exclusivamente na genética feminina e entra em choque direto com todas as normas patriarcais que ditam o nosso mundo. Digo que entra em choque eufemística e literalmente. É que a forma como este fator se manifesta é através de corrente elétrica gerada por toda e qualquer figura feminina. Como é que isto começou por ser a nova realidade, é algo que vamos descobrir ao longo da série, mas o mais preocupante é como o mundo decide reagir ao perceber que num simples estalar de dedos, qualquer pessoa pode ser eletrocutada.
É a partir desse momento, do terceiro episódio mais especificamente, em que essa realidade não só assenta em nós como nos personagens que a vivem, que as coisas dão uma volta de 180 graus e a série ganha força.
Inicialmente chegamos à mesma conclusão que todos chegam: os homens estão… tramados (para ser simpático). É tudo novo, é tudo incrível, finalmente a igualdade vai chegar. Para alguém como eu, que facilmente dava todos os prémios a um filme que tem como sinopse “uma mulher acorda e decide matar tudo o que tem cromossoma Y”, este é o momento em que quero ver tudo a arder!
Mas bastam uns minutos para o efeito novidade se dissipar e começamos a ver as nuances que esta mudança pode trazer. Se há coisa que já sabemos, é que o homem pouco gosta de perder a posição que tem, e não vão ser raios a sair dos dedos de mulheres que os vão impedir. Isso só os motiva ainda mais a tentar solucionar este “problema”.
Aquilo que depressa se podia tornar num alívio para todas as mulheres, rapidamente se transforma novamente numa dor de cabeça, pela qual elas vão ter de se continuar a mover sem pisar o ego frágil do patriarcado.
O que também se torna interessante de observar é a forma como quando os papéis se equilibram, e por vezes se invertem, e quão facilmente todos caímos nos mesmos erros. Daí que o assunto igualdade não seja uma conversa que se mantém amena e agradável do início ao fim. Antes de se tornar no ideal que todos queremos, ou que todos deveriam querer, vai ficar feio, bem feio. Mas talvez seja isso mesmo o que precisamos para lá chegarmos, haver aquela conversa difícil, aquela discussão que vai ser decisiva para o sucesso ou o fracasso completo.
O Poder não se mostrou com receio de ir por esse caminho, de arriscar e se mostrar totalmente como é, de não só pegar naquilo que é esperado que se oiça numa produção deste género, e que todos sabemos que fica bem dizer e ouvir, mas que também consiga ir por caminhos mais apertados que nos deixam a pensar verdadeiramente nestas questões. Nem sempre acertou, e há um personagem que poderia facilmente ser eliminado e tudo fazia sentido na mesma, daí que sempre que a narrativa muda para seguirmos este personagem masculino, parece que estão a encher chouriços. Não digo que deviam remover todos os personagens masculinos, mas faz mais sentido ver como reagem e interagem quando as mulheres são o foco, e de como o lado masculino se inserem na vida delas, do que seguir apenas um homem que teve um arco narrativo muito mal desenvolvido.
Mas no geral, esta série talvez até tenha um trabalho mais complicado do que as demais acima mencionadas, como The Handmaid’s Tale, que são distopias tão revoltantes que nunca na vida lá chegaríamos (certo?), mas quando é tão próxima e baseada numa realidade que conhecemos e vivemos diariamente, custa mais a aceitar o que nos estão a dizer. Principalmente quando aquilo que nos questionam é: vai ser mesmo necessário que as mulheres tenham poderes para que lhes seja dado o mínimo de igualdade e respeito?
Esta série também não se limita ao circuito fechado de um pequeno grupo de personagens, bem pelo contrário. Salta entre locais bem distintos do mundo para não só contar a sua narrativa e a manter dinâmica, como para mostrar o quão díspar essa realidade pode ser quando se dá um passo para lá da nossa fronteira. Tão depressa estamos nos Estados Unidos a seguir a incrível Toni Collette, como vamos ao Reino Unido ver a vida que o mafioso interpretado por Eddie Marsan deu à sua filha, como estamos na Nigéria ou na Arábia Saudita ou Moldávia. Entre grandes nomes do cinema e televisão e alguns outros que agora se estão a estrear, é um elenco que poderia não resultar, mas consegue ter o efeito oposto e dão origem uma química incrível entre todos.
Acredito que esta série ainda tenha muito para contar, e a Amazon já fez várias tentativas de ter um sucesso em mãos e acho que pode ter aqui encontrado um deles, mas também sei que nas mãos erradas, facilmente pode ficar arruinada. Até agora, parece que cada pessoa foi escolhida a dedo para o trabalho que lhe foi entregue, e sinto que pouco ou nada falham, mas dando a oportunidade devida, principalmente pelo começo aparentemente pouco entusiasmante, acho que ninguém se vai arrepender do tempo que passam neste mundo. E talvez até haja espaço para alguma aprendizagem.
Os primeiros três episódios de O Poder vão estrear em exclusivo na Prime Video a 31 de março, com novos episódios todas as sextas-feiras, até ao episódio final a 12 de maio.
Esta análise foi possível com o apoio da Amazon Prime Video!
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