O que não falta são outras séries de ficção científica (Raised by Wolves ou Upload) ou dramas de comédia no local de trabalho (The Office ou Superstore). Mas a nova série da Apple TV+, Severance é verdadeiramente intrigante pela forma como une estes dois géneros e construi algo próprio e diferente. Realizada por Ben Stiller, o que só por si já é estranhíssimo, a série só consegue surpreender ainda mais depois de passado esse crédito inicial, tornando-a talvez, no quebra-cabeças mais interessante do ano.
Ironicamente, a história foca-se precisamente no cérebro, mais especificamente, num procedimento que consiste em conseguir separar a tua pessoa no trabalho e a tua pessoa em casa, alternando entre uma e outro, como quem liga e desliga um interruptor. A empresa Lumen Industries é a primeira na vanguarda desta nova tecnologia. Aliás, é a única, e isto cria um ambiente de mistério e intriga inigualável. Afinal de contas, tentem imaginar alguém a perguntar-vos o que fazem no trabalho e não fazerem a mínima ideia, a não ser enquanto estão literalmente dentro do edifício.
A história foca-se no analista de dados Mark (Adam Scott) e nos seus colegas de escritório, tendo os quatro passado pelo tal procedimento que separa, absolutamente, os seus eus de trabalho dos seus eus domésticos. Lá dentro são colegas, quando saem do trabalho nem sequer se conhecem. O que os faz aceitar um acordo como estes? Quem se submeteria a isto? E porque é que este procedimento é necessário? Oque se faz naquele lugar? Estas são as verdadeiras perguntas, e, como seria de esperar, as respostas não são fáceis.
Mark passou pelo procedimento após a morte da esposa, numa tentativa de escapar da dor do luto, durante pelo menos metade da sua vida. A irmã, no entanto, logo de início diz o que todos nós queremos gritar para o ecrã: “que isso não é o mesmo que curar”. Para além de Mark temos Irving, Dylan e Helly, cada um com a sua história a desvendar, tanto lá dentro como cá fora. À medida que a série se desenrola, somos assaltados com questões inteligentes e profundas sobre o que realmente faz um “eu”, a existência ou não do livre-arbítrio, a ilusão da escolha, e muito, muito mais. Se não fosse pontuada com situações igualmente engraçadas ou intrigantes, a série mergulharia num poço de desespero existencial da qual nunca sairia, mas tal não acontece, oferecendo um equilíbrio extraordinário.
Inicialmente, é fácil ver o apelo da separação. Quem não gostaria de deixar o emprego para trás quando sai do trabalho? Mas logo fica claro o quão insustentável é a solução. Para a parte deles que apenas vive no trabalho, o pesadelo é real. As suas vidas existem apenas dentro das paredes monocromáticas daquele escritório. Quando saem do trabalho, a sua próxima lembrança é chegar no dia a seguir. Quem conseguiria viver assim por muito tempo? A situação, não muito surpreendentemente, acaba por ser insustentável. Imaginem ainda tudo isto e não fazer sequer ideia em que consiste o vosso trabalho? O mistério é ainda mais amplificado pela natureza dupla dos personagens separados. Cada ator está essencialmente a interpretar duas pessoas diferentes com desejos conflitantes. Mas pela natureza dos seus cérebros alterados cirurgicamente, conhecem apenas metade da sua própria história, tendo que ser relembrados de quem são através de cartões com bulletpoints sobre as suas personalidades exteriores. O que a empresa realmente faz nenhum deles sabem. Apenas sabem que têm dados para classificar em arquivos sem nome, dia após dias. No entanto, nada aponta que seja algo bom. Com o desaparecimento de um antigo colega e a chegada de Helly para o substituir, esse mistério toma novas proporções. De repente, há uma nova vontade de que seja desvendado que apenas escala quando Petey, o antigo colega de Mark, se senta à sua frente de Mark cá fora, onde não se deveriam conhecer, e lhe diz que tem informações sobre o terrível propósito de Lumen.
A verdadeira arma de Severance é o mistério. É um programa que prospera no inexplicável, atirando estranhas reviravoltas nos seus espectadores que são muitas vezes a razão para a sensação de pavor constante. Os planos, o set design, a cinematografia em si, são também, uma parte fulcral para isto. A essência da série cai no retro futurismo, tornando-a inesperadamente familiar e alcançável, mas ao mesmo tempo longínqua e macabra. Junta tudo isto ao ambiente corporativo e temos um clássico instantâneo. Afinal, quem não tem medo de grandes corporações e dos seus objetivos ocultos?
Embora comece relativamente devagar, a partir do momento que ganha balanço, a série nunca mais pára, com episódios cheios de ritmo e alucinantes, e outros mais contemplativos e calmos, viajamos ao longo de uma montanha-russa, os seus vales e montanhas, numa narrativa altamente bem escrita e construída, que nos traz revelações atrás de revelações e performances extraordinárias, num conceito refrescantemente sombrio e novo.
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